16.2.06




'Una furtiva lacrima'

Cesta básica de cinema: Woody Allen, os caubóis,
George Clooney e mais umas coisinhas



Um detalhe pequeno (mas importante) que adoro nos filmes de Woody Allen: a abertura, sempre igual, com a mesma tipologia compondo as letras brancas vazadas sobre o fundo preto, enquanto uma música dá o tom do que virá.

Em "Ponto final -- match point" esta música é, pela primeira vez, uma ária de ópera: "Una furtiva lacrima", de "O Elixir do Amor", de Donizetti. Mas como Woody Allen é Woody Allen, a gravação é mono, antiga e aparentemente sem remasterização, e a voz é de Enrico Caruso. É ele também quem canta "Mi par d´udir ancora", do "Pescador de Pérolas", de Bizet, e outros trechinhos diversos -- inclusive um, informa o Internet Movie Database (imdb para os íntimos), de Carlos Gomes.

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Com todo este variado cardápio musical, porém, o que ficou rodando mesmo na vitrola que ainda se esconde num desvão da minha cabeça foi a antiqüíssima gravação da abertura, vinda aparentemente do princípio dos tempos. Sinceramente: "Una furtiva lacrima", ouvida assim, dá vontade de cortar os pulsos. Não é à toa que esta é uma das árias mais populares da história.

Atribuo boa parte do clima de "Ponto final -- match point" à sua inesperada e espetacular trilha sonora. A ópera tem uma densidade dramática imbatível, que sublinha e acentua o destino inelutável das personagens. Não há jazz, samba ou rock´n roll que façam isso.

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O filme (muito pouco "woody-alleniano") é extraordinário, uma espécie de "Crime e castigo" remixado com Shakespeare e um quê de tragédia grega, tenso do começo ao fim. Uma bola de tênis filmada em câmera lenta, que ao bater na rede tanto pode cair para um lado quanto para o outro, é a metáfora perfeita para uma parábola sobre a sorte, em que, naturalmente, nem sempre as aparências correspondem à realidade. A moral da história -- cuidado com o que você pede aos deuses: eles podem atender ao seu pedido -- não chega a ser nova; mas o final é.

Há tempos Woody Allen não faz um filme tão bom.

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Empolgada com esta obra-prima, resolvi botar minha vida cinematográfica em dia, e fui assistir também a "O segredo de Brokeback Mountain". Não posso dizer que não gostei de todo mas, honestamente, não cheguei a me entusiasmar como esperava. Não sei se tinha expectativas demais, ou se, por acaso, um velho preconceito meu não veio à tona: salvo raríssimas exceções, odeio filmes de caubói. Não consigo me identificar com aqueles personagens, com aquele mundo áspero, com aquele sotaque que dói no ouvido.

Há momentos de indiscutível pungência, como quando Ennis (Heath Ledger) se esconde debaixo de uma ponte para poder gritar a dor da separação de Jack (Jake Gyllenhaal) -- que é, no fundo, a eterna dor das separações que não ousam dizer seu nome, sejam elas entre casais homossexuais ou heterossexuais. Mas, entre um ponto alto aqui e outro ponto alto ali, o que vi foram, essencialmente, muitos momentos longos demais, beirando o tédio.

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Saí do cinema com a nítida impressão de ter visto algo muito parecido há muito, muito tempo; algo que, na época, mexeu bem mais comigo do que, agora, a saga dos desconsolados caubóis de Ang Lee. O filme, de 1978, com Ellen Burstyn e Alan Alda, se chamava "Tudo bem no ano que vem" (Same time next year, no original); seu caráter trágico não era tão acentuado, mas ali também estava um casal que, por força das circunstâncias, era obrigado a se contentar com encontros casuais, e a quem o destino, caprichosamente, negava um Final Feliz.

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Independentemente do auê que está sendo feito em torno de "O segredo de Brokeback Mountain", para mim, o grande filme sobre a descoberta do amor homossexual continua sendo "Maurice", de James Ivory, baseado no romance de E. M. Foster. Feito há quase 20 anos, em 1987, quando Hugh Grant ainda era um nome desconhecido no elenco, ele é envolvente, triste e sensual, uma verdadeira jóia hoje perdida nas locadoras.

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Também vi "Boa noite, boa sorte", de George Clooney. É ótimo! Vocês sabem, claro: este é aquele filme em P&B que mostra o duelo verbal entre o apresentador Edward R. Murrow (David Strathairn, perfeito) e o senador Joseph McCarthy (ele mesmo, em fitas antigas). Qualquer semelhança entre a caça às bruxas da época (que passou à História com o apropriado nome de "macartismo") e a atual paranóia anti-terrorista americana não é mera coincidência -- mas diga-se a favor do diretor e do roteirista que eles confiaram na inteligência da platéia e não forçaram a mão em momento algum.

Grande arte.

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Apesar de estarmos apenas em fevereiro, acho que vai ser difícil vermos filme tão lindo e dolorido este ano quanto "2046 -- os segredos do amor".


(O Globo, Segundo Caderno, 16.2.2005)

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