Carmen Miranda, além do mito
Uma "reportagem" venenosa e um livro delicioso revelam à cronista, enfim, o lado humano da estrelaAté outro dia, nunca consegui pensar em Carmen Miranda como uma pessoa de verdade. Sei de muitas histórias, conheci Aloysio de Oliveira, Millôr me contou coisas do tempo que passou em Hollywood na sua casa, ao lado de Cesar Lattes e Vinicius, algumas vezes folheei os livros de uma antologia de humor que ela lhe deu e que até hoje está no seu estúdio. Cheguei a ter em mãos a plataforma que usou em sua última apresentação, no show de Jimmy Durante, amorosa e reverentemente guardada por Ricardo Cravo Albin -- mas, apesar disso, em nenhum momento minha imaginação conseguiu levar-me além de um ícone pré-fabricado, um produto de exportação bem-sucedido, sem ligação com a realidade.
Vi seus filmes, ouvi sua voz em dezenas de gravações, vi uma quantidade de shows em sua homenagem -- o mais recente, a maravilha imperdível criada por Marília Pêra, em cartaz no João Caetano.
E nada.
Há 15 dias, encontrei umas revistas velhas na casa da Laura, minha irmã. Na última página de "O Cruzeiro" de 12 de abril de 1952 havia a crônica de Rachel de Queiroz sobre meus tios, que reproduzi semana passada; e, no miolo do mesmo exemplar, uma "reportagem" de David Nasser (autor de "A vida trepidante de Carmen Miranda", conforme informa a revista) sobre "a estrela ingrata": "Carmen -- volte para os bugres".
"Carmem é ainda Carmen" -- começa o texto. -- "Seu sucesso, nos EUA, não decresceu e a temporada que realiza no Copacabana prova isto, bem como a recepção que lhe fazem os texanos, disparando os seus revólveres e dando hurras em louvor da fabulosa intérprete. Num ponto, apenas, Carmen não é mais Carmen. É na saudade que não tem do Brasil, na indiferença que há alguns anos parece dedicar à sua terra adotiva e à platéia que a consagrou, antes de todas as platéias do mundo. As reportagens para um país chamado Brasil, localizado no hemisfério latino, e onde se fala a língua portuguesa, não interessam a Carmen Miranda."
Segundo "O Cruzeiro", para obter as fotos que ilustravam o texto, teve que recorrer a uma agência francesa: apenas convencida de que as fotos circulariam em Paris, e não no Brasil, Carmen teria concordado em fazê-las.
"O Brasil saiu de suas cogitações artísticas e não figura, sequer, no seu carnet de turista. Nem ao menos para as suas férias Copacabana serve. E não vem ao Rio, sua cidade de adoção, nem mesmo em visita aos seus irmãos, aos seus amigos, aos seus fãs. Mesmo assim, teimosamente, o Brasil não se esquece de sua favorita. Que aconteceu a Carmen Miranda? Que mal o Brasil lhe fez? Este grande e generoso Brasil, que abriu os braços aos nossos pais, imigrantes cheios de esperanças, que acolheu há quase meio século a família do barbeiro José Maria Pinto da Cunha, pai de Carmen Miranda, que abriu os braços à própria Carmen Miranda, ainda menina, nascida portuguesa (....)"
"De uma hora para outra, sem nenhuma razão presumível, (essa moça portuguesa) riscou do mapa a grande terra que a hospedou durante tantos anos, esqueceu a língua portuguesa, desaprendeu o ritmo do samba que ela notabilizou, e trocou as rendas da baiana pela fantasia de cow-girl do Texas."
O pior, naturalmente, estava guardado para o fim, para o parágrafo com que David Nasser, o biltre, encerrava a "reportagem":
"Não tem importância, Carmen. Você pode riscar o Brasil de seu calendário artístico. Pode não sentir saudade, sequer, da terra que generosamente a acolheu, e dos amigos que deixou aqui. Pode dar-se ao luxo de recusar as páginas de uma revista brasileira e dar bananas, como nova Chiquita, à platéia que descobriu o seu talento enorme. Quando, porém, o inverno chegar, quando o frio dos Estados Unidos, no clima e na platéia, envolvê-la, quando o imposto de renda americano depená-la, volte, querida Carmen, para a maloca dos seus bugres. O Brasil a receberá de braços abertos, como quando você veio de Portugal."
Pois o veneno desta cascavel asquerosa (perdão, cascavéis!) conseguiu realizar o que nenhuma história, homenagem ou lembrança carinhosa conseguira até então: dar à moça por baixo das fantasias e dos turbantes a dimensão humana que me escapava. A pretensa "reportagem" me causou tal indignação, e me deu tanta raiva e tanta pena da sua vítima, que tudo o que eu queria era voltar no tempo, pegar Carmen Miranda no colo e niná-la, assegurando-lhe que, exceto nos romances de Harry Potter, não se deve dar ouvidos às serpentes (perdão, serpentes!).
Resultado: as páginas repulsivas da revista me atiraram direto às páginas acolhedoras de "Carmen", de Ruy Castro. Subitamente, senti vontade de saber mais sobre a diva que, afinal, eu era capaz de ver como uma pessoa vulnerável, de carne e osso.
"Carmen", o livro, é uma felicidade. Escorado numa pesquisa monumental, Ruy Castro criou um retrato vivo, divertido e minucioso, não só de Carmen Miranda, mas de toda a sua época; ele nos leva de um balcão de chapelaria na Rua do Ouvidor à Hollywood dos anos dourados, passando pelo Cassino da Urca e pelos bastidores da Broadway -- e nem nos damos conta de que, em dois tempos, devoramos quase 600 páginas.
O que fica claro, terminada a leitura, é que nunca houve mulher como Carmen; e que nunca mais conseguiremos vê-la apenas como um exótico produto enlatado.
(O Globo, Segundo Caderno, 2.2.2006)
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