2.6.11

O vício das figurinhas



De manhã muito cedo um barulho me acorda e não consigo mais dormir. Pego o iPad ao lado da cama para ver como vai o mundo. Mas nesse momento não me interessam as notícias de um mundo geral que, logo mais, vou ler no jornal. Quero saber do mundo de outras pessoas que, como eu, fizeram do Instagram uma espécie de segundo lar virtual. Nessa hora de mudança de guarda entre dia e noite, centenas de conhecidos que nunca se viram desejam bom dia ou boa noite uns aos outros, oferecendo  as fotos que não serão encontradas em jornal algum: uma flor, um gatinho se espreguiçando, uma mesa de café da manhã – que, dependendo do quadrante, pode ser bastante esquisita.

Visito os gatos Jiwan e Wenmaan, que moram no Japão e estão enroscados, prontos para dormir, na imagem enternecedora que o seu bípede publica. Chove em Oslo: minha amiga Ria, que já vai pela hora do almoço, continua com a série de flores que fez nos dias ensolarados. Não é a única. O povo da península escandinava está passando por um momento de inspiração floral parecido com o frisson que tomou conta dos japoneses na época da floração das cerejeiras. Chove também em Istambul, mas em geral os dias têm andado lindos, conforme sabe quem acompanha Mehmet, que fotografa coisas parecidas com as que eu fotografo, ou Nezih, que é profissional e tem um portfólio de verdade.

Na China, um dos melhores fotógrafos de natureza do Instagram pegou mania de abelhas: tem feito macros maravilhosas que captam as bichinhas em pleno vôo. Ontem pediu desculpas, num inglês macarrônico, por postar tanta abelha.

Meu amigo das Ilhas Marshall não é bom de foto, mas o simples fato de conhecer alguém nas Ilhas Marshall me deixa contente, e consumo com gratidão as suas imagens, primeiras que vejo daquele canto do mundo.

Há todo um coletivo de ótimos fotógrafos na Indonesia que se chama Iphonesia. Isso porque são radicais e só usam o iPhone: câmeras não entram.

Há dezenas de japoneses que só publicam fotos dos seus gatos,  diferentes dos nossos: têm carinhas mais arredondadas e olhos maiores. Há uma americana no Nepal que mostra cenas do dia a dia em cores saturadas, há a moça minimalista na Coréia do Sul que é o contrário ideológico da americana do Nepal e só fotografa em tons pastéis superexpostos, há o tatuador da Califórnia que faz tatuagens lindas e imensas, a enfermeira francesa que mora numa cidade pequena e costuma postar imagens do centro cirúrgico, e a criatura abençoada que vive nas Bahamas e passa os dias provocando a humanidade com praias daquele irresistível azul caribenho. Há seres peripatéticos que não sei onde vivem mas já estiveram por toda a parte, e há, claro, brasileiros espalhados pelo mundo todo. Isso não tem preço porque estou chegando à conclusão de que os países têm um tipo de linguagem visual distinta, um jeito próprio de fotografar. Não sei dizer no que consiste essa identidade, mas o fato é que, num amontoado de imagens como o Instagram, ela se torna vagamente perceptível. Trocando em miúdos, prefiro as fotos dos brasileiros porque é como se elas não tivessem sotaque para mim (preciso elaborar melhor essa teoria para poder entendê-la).   

Já meus amigos indianos são uma decepção. Em vez de fotografar o país que têm à sua volta, e que leva qualquer turista ao delírio, fotografam partidas de pólo e de críquete, almoços de família, amigos e amigas. É verdade que eu, por outro lado, praticamente não posto outra coisa além de fotos da Índia, o que deve frustrar quem me procura buscando o Rio – mas há tantos cariocas mostrando a nossa cidade, que não me sinto culpada por isso.

O Instagram é a felicidade de quem sempre quis mostrar os slides da viagem, mas nunca teve coragem.

Entre as fotos populares, que só Deus e o algoritmo do programa sabem como são escolhidas, encontro o fio que me leva a uma patricinha de Dubai que não vê nada além de bolsas Chanel, sapatos Vuiton, cupcakes, macarrons e café Starbucks, Porsches e BMWs. A minha primeira reação é uma mistura de tédio e de irritação. Olhando o conjunto da obra, porém, as fotos surpreendem: revelam personalidade e, em alguns casos, uma estranha beleza. O Instagram cai antes que eu consiga segui-la e, quando volta ao ar, não a encontro mais.

É hora de levantar e tomar ciência do que acontece no atacado; no pequeno varejo do cotidiano, já cultivei o meu jardim, colhi umas imagens e plantei outras tantas para que esse mundo virtual de miudezas continue girando.

* * *

No começo de maio, dois gatinhos tigrados foram abandonados na sede do Flamengo. O macho foi logo adotado, e a fêmea, excepcionalmente mansa, ficou à espera de alguém que a quisesse. Virou brinquedo das crianças do clube, e acabou vítima do que talvez tenha sido excesso de carinho – sua pata dianteira esquerda foi deslocada de tal maneira que há grande possibilidade de que fique aleijada para sempre. Os veterinários consultados descartaram a possibilidade de cirurgia ou de imobilização, já que o dano é neurológico.

Fiquei sabendo do caso e me ofereci para abrigá-la por uns tempos, durante o tratamento de fisioterapia e acupuntura que é a sua última chance de andar normalmente. Assim que chegou, ela se acomodou como se nunca tivesse vivido em outro lugar. Resumindo: Flor, a gatinha manca, é o novo membro da Famiglia Gatto.


(O Globo, Segundo Caderno, 2.6.2011)

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