22.4.10

Afinal de contas


(Esta foi a foto publicada)


(E aqui, o auxílio luxuoso que eu tive da Lolinha)

Nunca imaginei que, um dia, eu pudesse ficar animada e feliz ao saber que o correio trouxe muitas contas; e, no entanto, assim é. Chego da rua, a Vanessa diz que a escrivaninha está cheia de contas -- e não é que largo tudo e corro para o escritório? Os envelopes são geralmente pardos e forrados de plástico bolha. Vêm da China, da India, de Cingapura, da Austrália, da Malasia, do Nepal, dos Estados Unidos e da Europa, mais especificamente da Grécia e da Itália. Alguns têm selos (sobretudo os de Hong Kong, que trazem séries de pássaros, e são lindos, e os do Nepal, que comemoram incansavelmente os 50 anos de relações diplomáticas com a Alemanha, e são horríveis); outros, como Austrália e Thailandia, têm adesivos impressos nos correios, com data, hora e valor exato da postagem, mais um caprichado canguru ou elefante enfeitando a burocracia; os demais, que são maioria, nem ligam para esses detalhes gentis, e vêm apenas com o carimbo de liberação sem graça que mostra ao mundo que não são viajantes clandestinos.

Dentro, as contas vêm soltas ou embrulhadas em mais plástico bolha, papel, algodão. Algumas são tão pequenas que a gente tem que tomar o máximo cuidado para não jogá-las fora junto com a embalagem.

* * *

Liga uma amiga:

-- Está ocupada?

-- Mais ou menos. Estou às voltas com as contas.

-- Ah, nem fala, eu também. Se indignação matasse eu morria todo ano nessa época. Separo a papelada do imposto de renda, somo o total do que paguei... e é muita coisa! O Bergman se exilou, foi embora da Suécia porque ficou indignado com o que o imposto de renda arrancava dele e o que o governo lhe dava em troca – na Suécia! E devia pagar menos do que eu! É um absurdo ver um dinheiro tão difícil de ganhar fugindo pelo ladrão...! Você já viu político com dificuldade de fechar as contas no fim do mês? Já viu político morando mal? Mesmo os que entram humildes na profissão, se é que aquilo é profissão, acabam em apartamentos de alto luxo, com carro blindado e motorista... e a gente que agüente transporte de quinta, ônibus assassinos, aquele metrô nojento... mas tudo a custo de imposto sueco... e temos sorte, ainda, porque não dependemos dos trens.

Concordo inteiramente com tudo, mas minha atenção está nas contas; o pior é que, depois de tal tirada de civismo fiscal, nem tive coragem de dizer que as contas às quais me referia eram outras. O mundo está acabando, os aviões pararam, o imposto bate à porta – e eu me refugio em brilhos, desenhos, materiais e formas miúdas.

* * *

-- Você não acha isso muita alienação? – perguntou um amigo. – Que passatempo de madame!

-- Errou nas duas. Depende de como você olha. E as madames usam o resultado final. Madames jogam bridge, não enfiam conta. Quer ver uma coisa? Hoje recebi duas contas de acrílico, um fio de 12 contas de bronze muito toscas e uns peixes esculpidos em pedra, à mão, um por um. Qual foi o mais caro?

-- O que é que isso tem a ver com o que eu perguntei?

-- Tudo! Responde, vai.

-- As pedras esculpidas?

-- Errou. Os peixes são chineses, e foram o lote mais barato. As duas contas de acrílico são japonesas e, apesar de serem produto industrializado, custaram bem caro.

-- Ah, mas assim é óbvio: você não me falou de onde vinham! Os chineses têm mão de obra escrava, e os japoneses tem um custo de produção altíssimo, Tóquio é uma das cidades mais caras do mundo.

-- É, só que as contas mais caras de todas foram as africanas, feitas em Gana. Não sei qual é o custo de vida em Gana, mas a mão de obra local deve ser mais barata do que a japonesa.

-- O material é mais caro.

-- Negativo. O material das chinesas é mais caro. Vai, explica!

-- Sei lá!

-- Escala e logística. Deve existir uma aldeia na China onde todo mundo passa dia e noite esculpindo peixinhos em pedras semipreciosas, e como há muitos chineses há muitos peixinhos. Vai ver que essa aldeia que eu imagino é maior que Gana inteira, que tem 24 milhões de habitantes... A China é uma máquina de exportar que se alimenta de dólares. Há incentivos e facilidades de todos os tipos para exportadores, o país é um gigantesco entreposto. Mandei vir contas de todas as partes da China, sempre tão baratas que me espantam, sobretudo quando a mão-de-obra é mais importante do que o material. Mas vai comprar uma conta africana! Já comprei várias, de diferentes países e tribos, mas sempre através de terceiros, geralmente na Inglaterra, na Grécia e nos Estados Unidos. Não descobri na internet um único canal de compra direto para o continente. E desconfio que os africanos que fazem as contas, seja em Gana, no Quênia ou em Madagascar, ganham menos ainda do que os chineses. Viu só como bijuteria é um ramo complexo da atividade humana? Geografia, sociologia, antropologia, economia, história: o que você quiser você encontra num reles colarzinho globalizado.

* * *

Eu nem devia estar me queixando agora, que as contas começam enfim a chegar, mas me queixo mesmo assim, porque não é possível tanta demora. Colombo levou dez semanas para descobrir a America, Cabral chegou ao Brasil em um mês e meio, a Apolo XI chegou à Lua em menos de quatro dias, mas os Correios precisam de pelo menos um trimestre para trazer um mísero pacotinho de Hong-Kong!

O pior é que, a essa altura, estamos com o filme queimado em meio mundo. No eBay, maior site de compra e venda da internet, já são incontáveis os vendedores que se recusam a enviar mercadoria para o Brasil, seja por causa da demora, seja por causa da perda pura e simples dos produtos.

Convenhamos: é humilhante descobrir que somos um dos poucos países excluídos da brincadeira por gente que não tem nada contra mandar mercadoria para o Afeganistão ou para o Iraque.


(O Globo, Segundo Caderno, 22.04.2010)

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