O Luis Filipe, meu querido anfitrião, não é apenas diplomata; é também poeta dos bons, talento que não consegue disfarçar nem ao escrever prosa. Este texto foi publicado na revista Colóquio Letras, e eu o trouxe para cá para mostrar a vocês que lindo que é. A Didas da dedicatória é, claro, a Margarida.
As cidades em que vivo
Para a Didas, outra vez
As cidades atravessam o nosso tempo de vida e escrever delas é sempre uma despedida. Quem dirá o luto das cidades, a esplanada desaparecida da rotunda central, as novas fachadas de vidro e metal que nos vêm lembrar duramente que este já não é o nosso tempo? A minha cidade não existe, como o tempo não existe, no famoso paradoxo agostiniano: o passado já não é, o futuro ainda não é!
Eu tive cidades e deixei-as ir: não as enumero, visito-as. Mas tenho cidades acumuladas de memória e passado (as que já não são) e cidades erguidas num futuro imponderável e transparente (as que ainda não são). Poderia falar aqui de muitas cidades, como se andasse a remexer nas gavetas em velhas cartas de amor. Agora escolhi, num arriscado gesto de fidelidade ao presente, escrever da cidade onde vivo, uma cidade de cidades, feita de tantos espaços e tempos como os milhões que a cruzam dia a dia, num frenesim de colmeia.
Deli: que diria se dela me despedisse? A sensação que prevalece é a do movimento – como se as ruínas sobre as quais se construíram outras ruínas para sobre elas se construírem os verdadeiros templos do nosso século, os “shopping malls” (algo diferente dos “centros comerciais”), se evanescessem perante a força destes milhões que se movem, dentro dos seus carros de luxo, em cima das suas motocicletas, apinhados nos “rickshaws”, acumulados dentro de derruídos autocarros ou simplesmente caminhando ou acocorados no passeio ou comendo, fazendo a barba, tomando banho em plena rua. Cruzam-se as criancinhas das escolas, impecáveis nas suas fardas de molde britânico, com as crianças pedintes da rua, que chamam constantemente a atenção dos carros e dos passantes.
Recordarei mais a rua e a vida do que todos os túmulos mogóis ou esses enormes palácios que os ingleses construíram para sepultar o seu império (ó Shelley, ó Ozymandias!) e que servem hoje de cenário à complexa e intensa vida política da Índia, que é meu trabalho estudar e, tanto quanto possível, compreender. Recordarei mais os mercados de bairro (o Khan Market, onde sempre encontro o livro que quero, mesmo que tenha saído em Londres na semana passada!) do que os grandes “shopping malls” de Saket, onde os adolescentes passeiam impecáveis nas suas fardas de molde americano (“jeans” e “t-shirt”), cruzando-se com as crianças pedintes das ruas, que nos vendem flores, doces ou mapas.
Recordarei a Velha Delhi, onde tudo se vende nos passeios, à porta de lojas arruinadas, onde (ensinou-me o Luís Filipe Tomás!) se encontram os melhores alfarrabistas da Índia, onde as cabras passam no meio das revistas antigas expostas no passeio, mais do que os Lodhi Gardens, onde os intelectuais se encontram para tomar chá, fazer caminhadas entre os túmulos dos Lodhi (de que século estes Lodhi? - consultar mais logo o guia…) e ir ver as exposições ou os filmes europeus no Indian International Center ou na Alliance Française. Recordarei a Connaught Place, o centro do que não tem centro e o grande espaço ajardinado no interior do seu Inner Circle, por cima da moderníssima estação de metro. Recordarei os joalheiros, as lojas de tecidos, as explosões de cores por dentro de outras cores, as luzes efervescentes do Diwali, as tintas que deitam por cima de nós no Holi, as explosões de fogos de artifício sem razão conhecida (talvez mais um deus, dentre os trinta milhões…). Recordarei e guardarei para sempre comigo Ganesh, o deus com cabeça de elefante, o padroeiro dos escritores , que arrancou o seu grande dente de marfim para escrever o poema que lhe era ditado por um outro deus, como o Ion de Platão ou o Rilke no Duíno…
A religião está por toda a parte, nas pujas (orações) feitas nas lojas em pleno horário laboral, nos santos homens (sadhus) que passeiam pelas ruas alucinados e semi-nus, no cântico do muezzin na mesquita mais próxima, mas também na vasta, imponente e algo vazia catedral católica (as igrejas com santinhos e imagens de Nossa Senhora estão em Goa ou no Kerala) ou na igreja anglicana, que agora se chama “Church of India”…
Recordarei o carnaval (para lhe chamar assim, não me lembro do nome exacto da festa religiosa) muçulmano na Velha Deli, os carros alegóricos, todos ornamentados com figuras geométricas abstractas, os dançarinos que tocavam tambor até ao extremo do êxtase e do delírio (e até conseguirem as suas vinte rupias…), os doces partilhados na melhor doçaria ao pé da Grande Mesquita…
Recordarei a gentileza dos crentes no templo de Chattarpur (outros templos hindus há em que não podemos entrar), a delicadeza algo irónica, mas atenciosa, com que nos ensinavam os circuitos rituais, o caminho a tomar, os gestos a fazer, para cumprirmos a visita do seu templo, mundo que não nos pertence, mas a que nos não queriam deixar ficar inteiramente estranhos…
Recordarei o que, antes de partir para cá, li num livro do meu colega embaixador Pavan Varma (“Being Indian”): a religião hindu não é uma religião da passividade, o homem indiano não é o homem da renúncia. A deusa Laxmi pode entrar nas nossas casas e dar-nos a fortuna, assim saibamos nós investir nela as nossas oferendas (ideia tão racional como a dos recentes fundos derivados de Wall Street e que fez muito menos mal ao mundo…). A economia indiana cresce, mesmo em plena crise, “caminha radiosa sobre a sua própria miséria”(para citar Hoelderlin e ao mesmo tempo aludir com delicadeza às contradições terríveis deste país, numa elegante litotes ou “understatement”, que é como deve dizer um diplomata…).
A ideia do indiano como ser de renúncia e de negação do mundo veio-nos da leitura dos clássicos indianos feita, arrebatadamente, no século XIX, por Schopenhauer. Ora os clássicos, como sempre, dizem tudo e o seu contrário. O “Bhagavad Gita”, quase um diálogo socrático, é uma apologia da Guerra (Krishna) ou uma defesa da Paz (Arjuna)? Nem uma coisa nem outra, é uma exposição rigorosa do Dever (o nosso “Karma”). Um dever transcendental, diria que acima da própria lei moral e do seu céu estrelado…
O anoitecer levanta ainda mais ruído na cidade. Os meus colegas mais novos irão para uma dessas discotecas de Greater Kailash, onde se encontra o “beautiful people”, com direito a aparecer na coluna social (aqui diz-se “page three”) do “Delhi Times”. Penso no poeta Ghalib, um homem que assistiu aos massacres de 1857 e ao fim do Império Mogol. O túmulo dele está em Nizzamuddin, que é um bairro muçulmano por onde passamos agora, saídos dos Lodhi Gardens. É o poeta de Deli, sim, mas de uma Deli que já não existe, a Deli que a divisão da Índia feriu de morte, a Deli da antiga hegemonia muçulmana. Não, esta noite tenho um jantar em casa de uns amigos sikhs, desses que vieram fugidos do Paquistão em 1948, sem nada, a não ser a memória do saque e da violência, e que aqui em Deli refizeram a sua vida e refizeram Deli. O escritor da Deli de ontem e de hoje é um sikh, Khushwant Singh (cujo romance “Deli” está traduzido para português), a quem devemos também delicadas traduções para inglês da poesia urdu, nomeadamente de Ghalib. A Deli de ontem, essa, vive para sempre no tão proustiano, mas tão amargo, “Twilight in Delhi” do escritor de Deli, exilado desde 1948 no Paquistão, Ahmed Ali. Mais uma litotes? Política? Não, apenas literatura…
O jantar é longe, numa dessas “farms” enormes, a sul de Nova Deli. Com este trânsito, posso bem contar com uma hora até lá chegar! Vou olhar para a multidão e pensar num texto que prometi irresponsavelmente escrever para a “Colóquio Letras”. Um dia destes terei mesmo que o fazer. Mas a que cidade o irei finalmente prender, esse texto que virá: deixar-me-ei simplesmente ficar nesta noite de Deli, atravessada de luzes incoerentes e de criaturas improváveis, que enchem a rua e, ao atrasar o percurso, me provocam a imaginação?
Ou virá já do Rio de Janeiro esta criança que bate à janela do meu carro e me pede dinheiro por uma boneca esfarrapada que finge vender? Deixo-me arrastar num sonho acordado para a cidade do mundo onde mais intensamente vivi. O risco agora é deixar a escrita passar para o lado do confessional, o mundo dos afectos torna-se mais denso e a história pessoal impõe os seus ritmos e metros, dificulta-me a máscara ao me abrir ao riso… Mas de você, Rio de Janeiro, eu já me despedi. Escrevi mesmo dois livros para você, eu sei que não deu por nada, mas deixe para lá, ninguém mais deu…
Recordar o Rio? Eu não recordo nada. Sou parte dessa corrente que atravessa a minha vida, como o rio do Paulinho da Viola, e tudo de que é feito o Rio está presente em mim como coisa minha, feita intimidade ou mania, eu sou também daí. Mesmo que vocês não queiram.
Então penso no livro que estive hoje a ler, de Maitreyi Devi, e do verso do Bhagavad Gita a que ela se agarra para conseguir dar coerência ao seu passado e poder recuperar a identidade do seu amor: “unborn, eternal, everlasting, primeval, it does not die when the body dies”. Podemos sorrir da poeta de Calcutá, que inspirou “La nuit bengali” a Mircea Eliade… Mas não deixo de pensar na diferença entre a sedução feita de curiosidade e deslumbramento que me inspira Deli e essa espécie de amor fusional, “eterno e primordial”, que me leva a identificar-me agora com um Rio de Janeiro inventado por cinco anos de felicidade, vividos em comum…
Entramos agora na área das “farms”. Como é a estação dos casamentos, cavalos enfeitados e bandas de música sonâmbulas espalham-se pela rua, rumo às suas diferentes festas. O carro contorma os músicos, os cavaleiros, um ou outro búfalo desgarrado, estamos perto do nosso destino.
Se um comboio agora soltasse lentamente o seu apito sobre toda esta mirabolante cacofonia, eu imaginaria anacronicamente a tarde em que o escritor húngaro Frigyes Karinthy se sentou no Café Central, junto da Biblioteca Universitária de Budapeste, e começou a ouvir partirem comboios, um a seguir ao outro, num “ruído insistente, contínuo, suficientemente forte para cobrir todos os barulhos reais”. Karinthy pensou então que todos os órgãos do corpo humano poderiam ser dotados do dom da palavra e alguns meses mais tarde foi operado a um tumor no cérebro. Por mim, eu apenas esperava por vezes alguns amigos no Café Central de Budapeste, porque não há já tertúlias, os escritores húngaros agora até parece que moram todos em Berlim, mas à entrada do Café Central as velhas revistas dos anos 30 expostas em mostradores proclamam aos viajantes o esplendor das letras, como a estátua do Pessoa, a sentar-se com os turistas no Chiado, demonstra a todos nós o esplendor de Portugal. Aqui em Deli, onde os escritores se juntam nos Lodhi Gardens ou na Penguin Bookstore, talvez a partida dos comboios da estação de Nizzamuddin lhes possa algum dia evocar a terrível e extraordinária viagem à volta do seu crânio que em 1936 empreendeu Frigyes Karinthy. Mas espero sinceramente que não, a bem de todas as palavras que possam habitar nos seus corpos e virem a brilhar nas nossas leituras.
Parece que chegámos, o motorista insiste em tirar-me do meu sono (ou sonho acordado?). À porta da “farm”, esperam os criados vestidos de marajás. “I call you later” murmuro para o motorista - mais uma função começa para nós.
Abro finalmente a porta do carro e deixo-me guiar pelos criados engalanados até aos meus amigos, brilhantes nos seus turbantes coloridos, elas nos seus saris, atraentes como a luz e a promessa da carne (“it does not die when the body dies”)… Agora eu sou daqui. Tudo agora é passado e despedida. Tudo um dia será eterno e primordial… (Luis Filipe Castro Mendes)
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