8.11.09

Cheiros

Quando o sol se pôs no dia seis de novembro eu estava sentada numa pedra em frente a um lago na província de Deogarh, no Rajastão, ao lado de Devarth Singh, de 21 anos, sobrinho dos meus anfitriões no Deogarh Mahal, palácio do século XVII hoje convertido em hotel. Conversávamos sobre filmes indianos, câmeras fotográficas e os seus projetos de vida, enquanto o garçom que veio conosco no jipe nos servia chai e biscoitinhos.

Não se via vivalma num raio de quilômetros.

Assim como o negócio do turismo na região, o lago estava quase seco. A falta de chuvas decentes há mais de dois anos está fazendo um estrago horrível, só comparável às ameaças de atentados terroristas e à crise financeira, que afugentaram os firangs. Pássaros iam e vinham, se arrumando para dormir, e, no céu, apareciam as primeiras estrelas.

Nesse canto deserto do mundo ainda se vêem estrelas.

O ar fresco cheirava a terra, feno e estrume, e de repente me ocorreu que esse sempre foi o aroma natural do planeta, antes que o cobríssemos de cimento e de asfalto.

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A única coisa que me assustava de fato em relação à Índia, antes de vir para cá, eram os cheiros. Não sou enjoada em relação a nada e tenho poucos medos, mas sou muito sensível a cheiros. Visitar a Jama Masjid em Nova Delhi foi um programa desagradabilíssimo, menos pela roupa ridícula que me fizeram vestir do que pela fedentina generalizada, misto de lixão com vala negra e gente porca. Perfeitamente nauseabundo!

Fiquei preocupada achando que aquilo era só uma amostra do que me esperava em Varanasi mas, graças aos 33 milhões de deuses do panteão hinduísta, estava enganada.

O cheiro predominante em Varanasi é o de incenso, queimado por toda a parte em oferendas e rituais. Não é ruim, e combina com o ambiente. Aqui e ali alguns cheiros se sobrepõem, sobretudo o das frituras, o de especiarias e o de algum viajante com o desodorante vencido.

O próprio Ganges, poluído como está, não cheira, assim como não cheiram os ghats onde mortos são cremados dia e noite. A população local atribui o fato a um milagre de Shiva, mas a lógica dá o crédito a um santo mais banal chamado vento. Como não vi nenhum dos famosos cadáveres deslizando correnteza abaixo, não posso falar da cidade no seu pior.

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Em Nova Delhi, tirando a mesquita, não passei por nenhuma grande aflição olfativa. Chandni Chowk tem cheiro de escapamento de automóvel, curry, suor e incenso, muito incenso, usado para espantar as moscas; no Qutab Minar reinam as plantas, entre elas magníficas damas-da-noite.

Udaipur tem um estranhíssimo cheiro de água no deserto. Não me perguntem o que é isso, porque não há nada mais difícil de descrever do que um cheiro. A julgar pela quantidade de mangueiras, acho que, no verão, o ar deve ser com o de Belém do Pará, com a diferença que a água, lá, é molhada mesmo.

O sertão do Rajastão, que tenho percorrido nos últimos dias, cheira a campo. O esterco é onipresente, inclusive como combustível e material de construção. Não gosto nem desgosto, acho absolutamente normal e nem esperaria outra coisa.

O jardim do hotel de onde escrevo é perfumado por dezenas de pés de jasmim. Ouvem-se a água de uma fonte e os pios de pássaros noturnos. O efeito geral é paradisíaco.

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Os indianos gostam de perfumes fortes e, pelo que tenho cheirado, usam muito essências puras: rosa, jasmim, sândalo, por aí. A sorte é que os fixadores, se é que os há, não funcionam, de modo que o que tonteia qualquer um numa loja de perfumes acaba se perdendo no ar ao longo do dia.

Não percebi distinções de sexo no uso dessas essências; vários homens se perfumam com rosas.

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Dizem que as favelas em Calcutá e Bombaim fedem pavorosamente, mas não está no meu programa visitar favela alguma. Deixo isso para antropólogos, assistentes sociais e pessoas sem noção: tenho a maior bronca desse turismo da miséria, que acha pitoresco freqüentar a desgraça.

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