Diários da motocicleta II
Sempre passei por alto por aquelas páginas de esporte em que pernas quebradas de jogadores de futebol são discutidas à exaustão, assim como sempre achei para lá de exageradas as imagens de atletas se contorcendo na grama e uivando de dor. Também nunca entendi o auê em torno do joelho do Ronaldo. “Caramba!”, pensava eu com os meus ossinhos inteiros. “Uma perna quebrada também não é nenhuma tragédia!”
No dia mesmo em que fui atropelada, ainda não tinha idéia da extensão do perrengue. Liguei para a redação para avisar que não faria a crônica daquela semana, posto que seria operada no dia seguinte, mas estava convencida de que, assim que os ossos fossem postos no devido lugar, minha vida voltaria ao normal. Começava ali um choque de realidade que, não tenho dúvidas, ainda me reserva muitas surpresas.
Uma perna quebrada não é, de fato, nenhuma tragédia. Dói pavorosamente mas, um dia, ficará boa e deixará de doer. Enquanto isso, porém, o portador da dita perna passa a viver numa espécie de limbo existencial, até porque não pode sair de casa. Não está doente, mas também não está vendendo saúde. Melhora dia-a-dia, mas a melhora é tão lenta que nem se nota. Com uma séria agravante: à medida em que a perna melhora, a cabeça piora.
Essa, pelo menos, tem sido a minha experiência. Sinto-me como uma tartaruga virada de costas, que não consegue pensar em outra coisa a não ser desvirar-se. Às vezes apoio o computador no casco e escrevo umas coisinhas, mas passo o grosso do tempo virada para cima, olhando o teto, o céu e o vaivém dos helicópteros. O ponto alto do dia é a visita da fisioterapeuta, que tenta me desvirar.
* * *
Apesar de tudo, relendo o blog, é impossível deixar de notar progressos importantes. Fico muito contente por ter tido força de vontade suficiente para escrever, especialmente nos dias ruins. Se eu não tivesse esses textos por testemunhas, não teria idéia do quanto já estive pior:“Percorrer a ridícula distância da sala à cozinha virou uma aventura; ir ao meu quarto lá no fim do corredor é uma excursão que só vale à pena empreender no fim do dia, pra dormir; ir ao escritório, em obras, nem pensar”, escrevi no segundo dia em casa. “O próprio banheiro de visitas, que felizmente é banheiro mesmo, e não lavabo, mas que é ainda mais perto da sala do que a cozinha, virou ponto geográfico a ser cuidadosamente considerado antes que me anime a empreender uma incursão até lá. Tudo me parece horrivelmente distante, cada passo é um esforço sobre-humano, cada destino é uma viagem. Agora, que já não estou no hospital e começo a ‘pensar’ o corpo, descubro hematomas e pedaços doloridos onde antes tudo parecia OK. Meu braço esquerdo, por exemplo, que não tem um hematoma, dói demais. Minha perna direita, com duas manchas sinistras, está boa. Vá entender.”
No domingo passado, depois de um mês de casa, escrevi outro post amargurado – mas a diferença entre os dois é incrível:
“Hoje de manhã a enfermeira precisou sair para fazer uma prova. Ontem à noite disse que deixaria tudo arrumadinho pra mim, e que voltaria às duas da tarde. Achei ótimo. Já estou me achando bem independente, e a saída dela serviria para que eu testasse a minha capacidade de me virar sozinha. Acordei toda serelepe, abri a janela do quarto, dei bom-dia para os gatos, fui ao banheiro, me vesti e fui para a cozinha, me achando o máximo. Aí abri a geladeira para pegar o café da manhã -- uma fatia de abacaxi e uma vitamina de banana com farelo de aveia. Oops. Para tirar um prato ou um copo da geladeira a gente precisa de uma mão, certo? Só que para usar o andador a gente precisa de duas mãos. Resultado: tomei café em pé, dentro da geladeira, frustradíssima. Depois, já na sala, pronta a me espichar no sofá, me dei conta de que o travesseiro no qual apoio a perna estava no quarto, e que eu não tinha como trazê-lo de lá.”
* * *
Quem me chamou a atenção para o contraste entre os dois momentos foi o Paulinho, que deu um jeito de vir dos Estados Unidos para visitar a Pobre, Velha e Manquitolante Mãe Doente, mas que teve que voltar rapidinho para a família e o trabalho. De lá, acompanha pelo blog a minha vida de quelônio emborcado:“Acordei toda serelepe, abri a janela do quarto, dei bom-dia para os gatos, fui ao banheiro, me vesti e fui para a cozinha, me achando o máximo.
E é o máximo mesmo! Há apenas duas semanas, a única coisa que eu me lembro que você conseguia fazer era reclamar do maléolo... Comer em frente à geladeira é excelente, principalmente nos verões cariocas. Sem falar, claro, que ajuda com a recuperação, pois dá uma gelada no joelho também.”
* * *
Antes que alguém questione meu café da manhã, adianto: sim, é dieta. Pela primeira vez na vida estou me preocupando com o peso por razões não-estéticas. Quando o joelho bichado voltar à ativa, sofrerá menos se não tiver muito peso para carregar. Fazer dieta no estaleiro é punk, acreditem. O pior é que nem ao menos sei se o sacrifício está surtindo efeito, porque não consigo me pesar. A balança aqui de casa se recusa a dar informações precisas a sacis claudicantes.(O Globo, Segundo Caderno, 29.11.2007)
Nenhum comentário:
Postar um comentário