11.1.07



(Essa vocês já leram quase toda antes...)

Diário de bordo: rumo a Las Vegas

Boa romaria faz quem em casa fica em paz


Viajar para os Estados Unidos é um esporte cada vez mais radical, um teste contínuo para os nervos, a resistência e a paciência, com obstáculos de toda a sorte pelo caminho. Algumas notas de viagem:

6.1.2007, 14h20: a primeira etapa, depois de uma saída pontual e sem problemas do Brasil, foi passar duas horas -- 120 minutos -- na famigerada fila da imigração, às sete da manhã. Isso porque, para uns cinco ou seis aviões que chegaram simultaneamente, havia oito inspetores, cinco para a fila de cidadãos americanos, que andava rapidinho, e três para aquela coisa vaga conhecida como "resto do mundo". Sendo que um americano gasta a metade do tempo de um estrangeiro na inspeção porque não só entende o que diz a autoridade de língua presa como, ainda por cima, não precisa responder por que está aqui, para onde vai e quanto tempo pretende ficar.

Antigamente, eu achava essas perguntas impertinentes e desnecessárias. Mudei de idéia. Qualquer pessoa que venha para cá de livre e espontânea vontade, tendo o mundo inteiro à disposição, só pode mesmo ser doida, e com doidos há que tomar cuidado.

Como resultado da ineficiência e da incompetência dos inspetores, praticamente todos os passageiros estrangeiros perderam suas conexões. Não fui exceção. Perdi o vôo direto para Las Vegas que saía às 8h25, e fui remanejada para o das12h50... com troca de avião em Chicago. Sendo que troca de avião aqui não é só sair de um e entrar no outro; é passar pela segurança sem sapato, tirar o notebook da mala, perder a garrafa d?água e outros aborrecimentos do gênero.

Ma chi me lo fa fare?! Quem me obriga a isso?! Não posso culpar ninguém a não ser eu mesma. Acontece que, na outra ponta dos dissabores, está a maior feira de eletro-eletrônicos do mundo, seguida de cinco dias com os netos. A combinação é irresistível para esta avó hi-tech.

Talvez ao chegar a Vegas e descansar disso tudo a indignação diminua, mas agora estou cuspindo marimbondo: este país enlouqueceu de vez. Alguém tem que trancar isso aqui e jogar a chave fora, com a máxima urgência.

Neste momento, escrevo da sala vip da United. Como Dulles é uma porcaria de aeroporto, a sala vip não fica atrás. Aquela ducha bacana que se pode tomar em São Paulo, por exemplo, nem pensar. Há pacotinhos de pretzels, bananas e maçãs, uma máquina de café e uma cáfila de refrigerantes, mas não há um único jornal ou revista, exceto a Hemispheres, que é a Ícaro cá deles, e que todos já leram a bordo.

Há o wi-fi que estou usando, é verdade... mas é pago.

Calma, Cora, calma.

* * *

6.1.2007, 22h40: O avião sobrevoa montanhas nevadas. Saí de casa ontem às 17h30. A última refeição decente que fiz foi assim que decolamos de São Paulo, depois da meia-noite: salmão grelhado com salada e torta de maçã com calda de canela, muito gostoso. A viagem já se arrasta por 29h10.

No assento do meio, ronca um nativo tipicamente sobrepesado, desmaiado por cima de mim. Verdade se diga, está desmaiado também por cima do passageiro do outro lado -- mas aquele, pelo menos, está sentado no corredor e pode se levantar de vez em quando. Ainda assim a janela compensa: uma das poucas coisas boas da viagem sempre enrolada para Las Vegas é sobrevoar essas montanhas e o Grand Canyon, que já não verei por causa da hora.

Minha agenda cuidadosamente planejada, que previa adiantar três coisas hoje, foi pro brejo. Estou tão cansada que já ultrapassei os limites do cansaço; funciono em piloto automático.

É impressionante como os Estados Unidos conseguiram transformar algo que se fazia com prazer num autêntico suplício. O estresse da viagempara cá começa antes mesmo do embarque, com a saraivada de perguntas mecânicas e cretinas (Quem fez as malas? Quantos dólares tem na carteira? Está trazendo explosivos?) e as "medidas de segurança": meus três tubinhos minúsculos de hidratante, creme para as mãos e pasta de dente foram colocados num ziploc que, em seguida... me foi entregue!

Ora, supondo que eu fosse capaz de produzir uma bomba de grande poder destrutivo juntando o hidrante, o creme e o dentifrício, no que é que esse saco plástico idiota me impediria de fazê-lo -- e de mandar a aeronave pelos ares, literalmete?!

Nenhuma "medida de segurança" desse povo faz qualquer sentido. O pior é que ninguém se dá sequer ao trabalho de pensar a respeito do assunto, quem dirá questioná-lo. Descalçar moçoilas de sapatilhas e velhinhos de sandálias ortopédicas é tão inútil quanto tirar os notebooks das malas mas deixar em paz as câmeras fotográficas mais poderosas. Ninguém precisa ser um gênio do mal para perceber que, no corpo de uma dessas câmeras, é possível esconder tantas coisas quanto no de um computador.

Ou todos os eletrônicos de certo porte oferecem o mesmo risco (e deveriam, portanto, receber o mesmo tratamento), ou toda essa papagaiada só tem por objetivo cultivar o medo, numa ação contínua de terrorismo de estado que, a essa altura, já fez mais estragos do que o 11 de setembro.

Hoje este é um país de carneiros acovardados, que marcham para o abatedouro com os sapatos nas mãos.


(O Globo, Segundo Caderno, 11.1.2007)

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