18.1.07


Diário de bordo II: lembranças de Las Vegas

À sua maneira, a cidade tem seus encantos... por alguns dias


"Este hotel é uma réplica exata da cidade de Veneza", disse o rapaz. A moça não disse nada. Estava deslumbrada demais com o The Venetian, uma das extravagâncias arquitetônicas de Las Vegas, que tenta ser... bem, uma réplica exata da cidade de Veneza (!). Eu já tinha ouvido histórias a respeito de americanos que visitam Las Vegas e ficam convencidos de que não precisam ir mais a lugar algum, mas nunca antes tinha me deparado com a espécie. Olhei para o casal para ver se encontrava, na expressão de um ou de outra, algum vestígio de ironia que tivesse escapado à voz. Não encontrei. A conversa era mesmo a sério, e continuou enquanto eu corria para dentro, arrepiada de frio.

No caminho para o meu quarto passei por um Canal Grande de águas impossivelmente azuis, por dois saguões maiores do que a Basílica de São Marcos e por mais mármore do que há em todos os palácios de Veneza reunidos; mas enquanto aquela estátua da Liberdade indecorosa lá da Barra me irrita a mais não poder, a Veneza cafona do deserto até me diverte ? por uns tempos. A cidade é um sucesso dentro do que se propõe. Não é para ser pensada em termos de Bauhaus, mas de Joãozinho Trinta; e, vista assim, é uma viagem e tanto.

* * *

Fui a Las Vegas pela primeira vez há cerca de 20 anos, atraída por uma feira de informática. Naquele momento, a cidade, meio decadente, começava uma espetacular volta por cima: o aeroporto (até hoje um dos melhores dos Estados Unidos) estalava de novo, e o Mirage, primeiro de uma série de hotéis voltados para um público jovem e antenado, começava a ser construído. Seu logotipo foi entregue a Clement Mok, então recém-ex-diretor de arte e criação da Apple, e responsável, entre outras coisas, pela famosa marca da maçã colorida. Difícil imaginar forma mais taxativa de anunciar ao mundo uma virada; embora, sendo Las Vegas o que é, o lindo logo das palmeirinhas tenha sempre permanecido como uma espécie de incongruência estética entre tantos dourados e tantos quilômetros de carpetes bizarros.

(Steve Wynn -- um dos notórios milionários exêntricos do pedaço e, na época, dono do Mirage -- não desistiu, ainda, de criar um marco de absoluto "bom gosto" por lá: o Wynn, seu empreendimento mais recente, é o que pode existir de clean e luxuoso pelos padrões locais. Os dourados continuam brilhando, mas nesse hotel, milagre dos milagres, até os carpetes são, ocasionalmente, bonitos.)

Naquele final de década, contudo, Las Vegas ainda não era a cidade-família que é hoje, e os cassinos faziam de tudo para atrair o público. Um truque que funcionava muito bem era oferecer shows quase gratuitos e comida e bebida a preços irrisórios. Longe da Strip, a avenida que reúne os estabelecimentos mais famosos, o Golden Nugget era, apesar da situação geográfica ingrata, muito freqüentado; tinha um buffet tão bom e barato que atraía filas gigantescas. Limpo e luxuoso, o Golden Nugget era o sinal de que os tempos estavam para mudar também em Fremont Street, onde ainda se encontravam estabelecimentos detonados, caça-níqueis para níqueis, bêbados pelas calçadas e a sensação de que aquele era um lugar malsão... e, francamente, muito atraente.

Hoje os shows são caríssimos e o tempo da bebida farta e da comida grátis é página virada. Uma garrafa de água não sai por menos de dois dólares e os restaurantes, que melhoraram assombrosamente, cobram de acordo com o que oferecem. Comparados aos restaurantes americanos estão dentro da média. Comparados aos restaurantes cariocas, são uma pechincha.

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Não sei quantas vezes estive em Las Vegas. Quando a Comdex deixou de ser uma feira interessante, a CES, espécie de UD turbinada, assumiu seu lugar. Depois, com o transtorno que passou a ser viajar para os Estados Unidos, me afastei; mas apenas o suficiente para ficar espantada com seu crescimento vertiginoso.

Las Vegas é, atualmente, a cidade que mais cresce no país. Essa não chega a ser uma notícia alvissareira. Ela fica no meio do deserto; o supra sumo da ostentação local é ter piscinas gigantes, aquários imensos, jardins verdejantes. De onde vai se tirar água para sustentar tanta gente, e tudo isso? E de onde se vai tirar energia para sustentar o consumo féerico dos cassinos?!

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Nos velhos tempos, eu tinha mania de jogar uma moedinha de 25 centavos nos caça-níqueis do aeroporto assim que desembarcava. O resultado determinaria minha sorte para os próximos dias: se ganhasse, estava livre para gastar até US$ 20 diários; se perdesse, nem chegava perto da jogatina. Dessa vez, quando me dirigi para as máquinas, vi que estavam todas seladas. Para jogar, só comprando um vale com código de barras. Guardei a moeda no bolso, não joguei e não perdi nada (em todos os sentidos). Mais tarde fui investigar o por quê daquilo, e me disseram que a medida visa proteger as crianças que trafegam pela área. Diante disso, só posso sugerir que dêem o epíteto de "Sin City", cidade do pecado, àquela que de fato o merece: Washington, DC.


(O Globo, Segundo Caderno, 18.1.2007)

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