26.12.03



O Natal visto de fora... e de dentro

Terça-feira, 19h55 na redação semi-deserta do Globo. Metade dos colegas, que vai trabalhar na semana do ano novo, não veio; da outra, quase todos já foram embora, aliviados alguns, aflitíssimos os outros, que ainda têm compras de Natal por fazer. Eu me incluo no último grupo, com uma diferença significativa: continuo aqui dentro, ao passo que as compras ficam lá fora. Os ponteiros do relógio digital — que nem os tem — avançam inexoravelmente. A cada minuto o trânsito fica mais intransitável, os shoppings mais cheios, os vendedores mais neurastênicos. Virada de costas para mim, uma televisão alterna anúncios que falam em paz e felicidade com depoimentos de consumidores histéricos, desesperados em busca do inatingível — aquele presente bom, bonito e barato. Em suma: enquanto o clima natalino atinge seu ponto máximo, a tela do computador me olha branca, vazia, esperando que eu tome uma providência.

— Como é, essa coluna sai ou não sai? — parece dizer. Na verdade diz, agora que escrevi a pergunta.

— Calma, não é tão fácil assim! — respondo, esperando que ninguém note que agora dei de falar com monitores de 17 polegadas. — Essa coluna é para 25 de dezembro, e tenho sérias dúvidas a respeito da utilidade de se escrever qualquer coisa para o dia de Natal. Sempre acho que esse é um dia em que ninguém vai ler jornal. Todos vão estar tão empolgados com os brinquedos novos, tão bodeados da festa... Quer saber? Só tem uma coisa pior: dia 1º de janeiro.

— Data da sua próxima coluna — informa a tela, quando, invadida por uma certeza cruel, clico no calendário.

Fico desmotivada demais quando penso que posso estar escrevendo algo que ninguém vai ler: não seria melhor ir à praia? O pior é que, hoje, como não sou católica, nem ao menos posso escrever sobre o profundo significado religioso da data. Não, não adianta. Essa crônica é uma missão impossível.

A tela, que não entende a minha angústia, continua parada, me olhando.

— Calma! Eu vou escrever.

— Estou calma. Muito calma. Há poucas coisas tão calmas quanto uma tela em branco.

* * *

Na semana passada, a essa hora, eu não estava diante de um monitor pouco compreensivo. Estava lá fora, bem longe da redação, vivendo uma grande aventura. A bordo de um rebocador, debaixo de uma chuva que só vendo, ia, intrépida, em direção à árvore.

“A” árvore, sim — aquela, da Lagoa, que mora em frente à minha casa e que, a cada ano, se supera em altura, beleza e... quilômetros de engarrafamento.

Abre parênteses: sei que quem enfrenta trânsito pesado todos os dias não acha a menor graça no meu ponto de vista mas, sinceramente, apesar do transtorno, não consigo ter antipatia por esse engarrafamento. Acho bonito constatar que, num mundo tão revirado e violento, ainda há tanta gente que se movimenta para ver uma árvore de luz flutuando na água — por bobo que isso possa parecer. Fecha parênteses.

* * *

Enfim, como eu ia dizendo, lá estava eu, singrando a Lagoa rumo à árvore. Ela é mais bonita vista de longe, mas infinitamente mais impressionante vista de perto. De longe, é só uma escultura iluminada; de perto, um navio fulgurante, uma perfeita embarcação.

Isso não é figura de retórica, mas a realidade da árvore, que, solidamente assentada em 11 flutuadores e ocupando uma área de 700 m², é uma complexa obra de engenharia naval, parente de barcos e de plataformas flutuantes. Ao seu redor, além dos pedalinhos, nadam cardumes de peixes atraídos pelas luzes e pequenos caranguejos, hipnotizados.

* * *

Os cinco profissionais que dão plantão no oco da árvore passam o tempo resolvendo eventuais problemas, vendo televisão, espiando pedalinhos. Pablo Hernandez, técnico em luzes móveis e, digamos, “comandante” da nau, que já leu oito livros desde sua inauguração, estava devorando, muito apropriadamente, “Fogo interior”, de Carlos Castañeda.

Faz muito calor dentro da árvore, que tem 2,8 milhões de microlâmpadas (daquelas que a gente usa para enfeitar a casa), 26 mil metros de mangueiras luminosas para formar os desenhos de anjos, notas e estrelas, e oito holofotes. A energia necessária para fazer tudo isso brilhar a contento daria para o gasto de 150 apartamentos de dois quartos — e quando tudo de fato se acende, naquele momento em que a árvore fica iluminada da cabeça aos pés, em toda a sua glória, quem está lá dentro passa a entender, literalmente, o sentido da expressão “banhado em luz”.

É um momento mágico, e a metáfora é irresistível: que 2004 seja assim iluminado, flutuando em águas calmas, trazendo alegria e encanto para todos nós.


(O Globo, Segundo Caderno, 25.12.2003)

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