4.12.03






Há meninos brancos em Angola

E o céu de Silva Pinto, simplesmente magnífico


"Não me digas que em Angola não há um garoto branco... um velho de olhar terno para fotografar?” — perguntaram, dia desses, ao Silva Pinto, o amigo angolano de tantos brasileiros, mestre em registrar os fatos (sem perder a ternura jamais). Uma provocação seguida do que eu, admiradora do seu trabalho, considerei no mínimo um desaforo: “Não alteres muito os tons ao céu com programas de fotografia... perde a graça.”

Não é à toa, porém, que o homem tem aquela elegância toda. Confiram sua resposta:

“Garoto branco, garoto negro, garotos “todos iguais, todos diferentes”, todos garotos, será que assim é, será que é assim que as coisas acontecem na minha realidade. Bom, como tu deves saber eu vivo em Luanda, Angola, vivo em África onde a população negra é maioritária. Em Luanda, há garotos brancos, sim, há meninos e meninas brancas, há meninos e meninas negras. Se me perguntares se vivem todos da mesma maneira, estou tentado a dizer-te, sem te mentir, que não, que a esmagadora maioria dos meninos negros da minha terra não vive da mesma maneira que a maioria dos meninos brancos.

Os meninos brancos de Luanda, são, em regra, filhos de expatriados trabalhadores das petrolíferas, das ONGs, das companhias estrangeiras, do Corpo Diplomático acreditado em Angola, e de poucos cidadãos europeus que por razões profissionais cá se fixaram ou por cá se deixaram ficar. Majoritariamente estrangeiros, portanto, vivem nos luxuosos e caríssimos bairros residenciais de Luanda, em enormes casas cercadas de muros altos bordejados de arame farpado ou cacos de garrafa com guarda fardado à entrada, não têm falta de água nem de electricidade, freqüentam as escolas privadas caras de Luanda, não andam a pé, deslocam-se de carro com motorista, não têm paludismo, têm piscina no jardim, não comem uma bucha sentados no chão, têm pai, têm mãe, têm cartão de vacinas, sabem onde nasceram, sabem o dia e a hora em que vieram a este mundo, têm brinquedos, têm sonhos de menino, não são surrados por dá cá aquela palha pelo primeiro que aparece e tem necessidade de descarregar raivas antigas, dormem o sono tranqüilo e fresco dos anjos velados por uma bábá de serviço (essa sim, quase sempre negra) que até fala a sua (deles) língua.

Fotografar estes meninos será sem dúvida tarefa interessante, será também tarefa muito árdua. Imagina tu o que me fariam se me apanhassem empoleirado num escadote de câmera apontada a fotografar as crianças loirinhas e lindas do Sr. Fulano de Tal, em amena brincadeira à volta de uma piscina, numa qualquer tarde quente? No mínimo seria acusado de qualquer coisa bizarra. Os meninos que eu posso fotografar são os meninos com quem eu cruzo na rua diariamente, que me chamam Tio, que têm fome (alguns), que sorriem, que choram, que brincam, que não têm guardas nem babás, que têm como piscina o charco no passeio feito pela última chuva ou pela conduta de água da Epal que estoirou e nunca foi reparada, que não têm hora de regressar a casa, ou porque simplesmente não a têm, ou porque ninguém os espera para jantar.

Os velhos de olhar terno, esse já é outro assunto. A esperança de vida em Angola, como deves saber, é de tal forma das mais baixas do mundo que encontrar um velho já é difícil, então encontrar um com olhar terno será, direi eu, um acaso muito feliz. Sabes, eu não exploro a miséria, seria até muito fácil para mim fazê-lo, nem a tristeza, eu não invento a dor nem o sofrimento, eu não fabrico poses nem sorrisos, eu não fabrico imagens chocantes pelo simples prazer de incomodar. Por uma questão de princípios e de respeito próprios, e pelos outros que fotografo, eu só capturo o que me toca, nada do que fotografo é falso ou artificial, tudo o que vês nas minhas fotos existe, é palpável, é natural, é verificável.

Vem ver ou pergunta a quem já viu, como é que é um céu da minha terra, um pôr-do-sol da minha terra. Quem sabe eles se lembrem e te digam que é… simplesmente magnífico. Se quiseres, os ajustamentos que faço às minhas fotos no computador são os mesmos que, há uns anos atrás, se faziam no ampliador, quando se escolhiam os tempos de exposição, fabricavam máscaras para proteger zonas e queimar mais outras, se utilizavam determinados reveladores e emulsões para se obterem determinados resultados. Se já fizeste cópias de contacto, tiras de teste, escolheste filmes e papéis em função de efeitos que queres criar, deves saber do que estou a falar. Os meus azuis são mesmo azuis, as minhas cores são mesmo cores. Não as altero, não as modifico, não as fabrico, estão aí para quem as quiser apanhar.

Agora, sejamos realistas, e deixemo-nos de falsos purismos. A fotografia é uma arte, é emoção, mas também é técnica. Ou por acaso supões que os grandes fotógrafos não usam filtros, não polarizam os céus, não ajustam contrastes? Se calhar, eles não o fazem, mas tem quem faça por eles…

Valha-me Nossa Senhora dos Recados, que isto hoje já vai longo.

Volta sempre.”


(O Globo, Segundo Caderno, 4.12.2003)

Outro texto que vocês leram antes aqui; mas achei que seria uma pena deixá-lo restrito ao universo ainda reduzido das pessoas que lêem blogs e vão ao Fotolog, tendo aquele lindo espaço disponível lá no jornal...

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