18.12.03



O caso do cachorro iraquiano

Amigo, inimigo, tanto faz: para os americanos, todos são descartáveis


Tá. É muito bom o Saddam estar preso, neutralizado e coisa e tal, mas... os americanos não vão aprender nunca?! Não percebem que humilhar publicamente o monstro é, desde logo, diminuir a sua monstruosidade -- além de afrontar os sentimentos de meio mundo?! Por terrível que tenha sido sua ditadura, por mais mortes e miséria que tenha causado, Saddam é prisioneiro de guerra, e prisioneiro de guerra, todos sabem, deve ser tratado com dignidade. Caso contrário, quem o capturou a ele se iguala na barbárie.

As fotos do tirano de boca aberta, sujeitando-se a um procedimento médico provavelmente desnecessário, são chocantes não só pela sua grosseria mas, sobretudo, pelo que revelam da falta de sensibilidade de quem as fez e distribuiu. É assustador imaginar que o mundo está à mercê dessa gente, incapaz de perceber o grau de repulsa gerado por imagens assim.

Os americanos que estão no poder -- que me perdoem os americanos tão revoltados quanto eu -– parecem ter perdido, de vez, qualquer sentimento de humanidade. Não têm -- e nem parecem interessados em ter -- a mais vaga noção de como sente qualquer pessoa fora da sua abençoada América

Naturalmente, ninguém ignora que Saddam fez muito pior com os seus prisioneiros. Não há mais o que discutir a seu respeito, ele é indescritível como ser humano. O problema não é o que acontece com ele, e sim o que lhe fazem: ainda estão nos nossos olhos as fotos dos seus filhos mortos, expostas em todos os jornais do mundo. A selvageria levada ao extremo, de todos os lados.

Como diria o filósofo paulista, mata, mas não tripudia. Prende, mas não humilha.

Pois então não aprenderam que não se chuta cachorro morto?!

Não, é óbvio que não. Para eles, cachorro bom ainda é cachorro morto.

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Para mim, as fotos de Saddam prisioneiro se equiparam, em impacto emocional, a uma pequena notícia que meu amigo Juan Carlos Castro y Castro descobriu, no fim de semana, no Orlando Sentinel, jornal da Flórida:

"O regulamento não permite que soldados americanos no Iraque tenham animais de estimação, mas uma cadelinha preta e magricela que se aproximou da Guarda Nacional da Flórida, estacionada ao norte de Bagdá , se recusou a ir embora" -- escreveu o repórter Roger Roy. "Os soldados da Companhia Alfa do Segundo Batalhão do 124 Regimento de Infantaria a adotaram, dando-lhe o nome de Apache, em referência à identificação da companhia.

(....) Apesar de afetuosa com os 130 soldados da companhia, Apache notava estranhos imediatamente, latindo e rosnando em tom ameaçador. (....) Fazia grande festa para os soldados que retornavam de patrulhas, mordiscando a mão dos homens e rolando no chão para que lhe fizessem carinho na barriga.

Os soldados foram avisados que estavam violando as regras, e que teriam que livrar-se dela. (....) Levaram-na de carro a um lugar distante da base, na esperança de que alguém a encontrasse mas, em três dias, Apache achou o caminho de volta. Finalmente, perto do dia de Ação de Graças, os soldados levaram o seu animal de estimação a um veterinário, que a destruiu."

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Quem é pior, o que dá uma ordem dessas ou o que a obedece?! Será que ninguém pensa mais, que ninguém sente mais nada?! Como é que se pode matar um animal inocente e amoroso, única alegria que se tem em meio ao horror?!

Enquanto isso, um cão cenográfico cuti-cuti, mais artificial do que o peru de plástico que encantou os fantoches do refeitório militar em Bagdá, faz gracinhas para a imprensa, no vasto esquema de marketing que pretende assegurar a Bush a continuidade no poder.

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Ah, dirão vocês, o que é um simples cão diante dos milhares de mortos do Iraque, antes e depois da guerra? Mais uma vez, digo que não é exatamente o cão o xis da questão, mas o que ele simboliza. A amigos e superiores todos tratam bem; mas pessoas (e países) revelam-se pela forma como tratam os inimigos, os mais fracos e os animais. Na última semana, os governantes dos Estados Unidos falharam redondamente em todos os quesitos. E o pior é que isso nem nos surpreende mais.

* * *

Enfim, para constar: que vergonha, o Saddam, tão despreendido em relação às vidas dos demais iraquianos, se deixando capturar vivo. Mais uma vez se comprova como a crueldade anda de mãos dadas com a covardia.

* * *

Atenção: vocês só tem mais dez dias para assistir a “O que diz Molero”, no Teatro Casa Grande! O espetáculo é longo, sim, mas é fenomenal. Imperdível.


(O Globo, Segundo Caderno, 18.12.2003)

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