10.9.08

Como eu ia contando...




Resumo da história até o momento: presa comigo no Orange Level do Aeroporto de Atlanta, quando estive nos Estados Unidos em agosto passado, a Capi ficou muito traumatizada. Achei que fosse se trancar na mala e nem pôr o focinho pra fora antes de voltarmos ao Brasil, mas ela é curiosa e, pata ante pata, sempre se escondendo pelos cantinhos, resolveu ver qual era a de São Francisco.



Gostou muito de Chinatown, sobretudo porque quase não ouviu ninguém falando inglês por lá. Não tive coragem de dizer-lhe o que penso sobre os chineses e a forma como se relacionam com o mundo à sua volta, sobretudo com os animais; falar de certas coisas em determinados momentos não é de bom tom.

Quando estávamos voltando para o hotel, a Capi ouviu um barulho vindo de trás de umas caixas numa pilha de lixo. Foi ver o que era, e lá encontrou um animalzinho falecido e não identificado, vítima dos agentes da HSA, que o prenderam no Orange Level sem água ou comida.

Compreensivelmente, estava ainda mais traumatizado do que ela.



Ele não soube dizer nada a respeito de si mesmo. Muito cabreiro, voltou conosco para o hotel. Foi preciso muito papo da Capi para deixá-lo um tiquinho mais à vontade.

No dia seguinte, saí para trabalhar. Os dois estavam dormindo feito pedras, agarrados um ao outro, dois pobres bichinhos assustados, impotentes diante das maldades do mundo em geral, e de um estado policial.



Mais tarde, a Capi foi passear e, logo ali ao lado, deu com uma enorme construção cheia de luzes e cores.

-- Oh! – exclamou. – Um Templo de Consumo!






(Tive sorte: o cartão de crédito estava comigo, em Palo Alto.)

Logo foi abordada por um dos Sumos Sacerdotes:



-- Bom dia! Meu nome é Pink Floyd. Em que posso ajudá-la?

-- Prazer, Pink Floyd. Capivara. Estou só olhando.

-- Fique à vontade. Qualquer coisa que precisar, é só chamar.

-- Vem cá. De quadrúpede para quadrúpede: você também foi preso?

-- Eu? Não, eu nunca fiz nada de errado.

-- Eu também não, mas mesmo assim, quando cheguei aqui, passei um tempão sem saber o que ia acontecer comigo.

-- Você acha que não fez nada errado, mas certamente fez. Estrangeiros são sempre perigosos, uma ameaça ao American Way of Life. As pessoas que tomam conta das fronteiras são pagas para manter os estrangeiros no seu devido lugar.

-- Os oficiais nazistas também eram pagos para manter os judeus no seu devido lugar.

-- Nazistas? Gozado, passei a vida toda aqui na Califórnia e nunca ouvi falar dessa seita.

-- Alemanha, anos 30...

-- Ah. Mas eu sou cidadão americano. Como é que você quer que eu conheça uma seita asiática tão antiga?

-- A Alemanha fica na Europa.

-- É tudo a mesma coisa. Todos têm inveja dos Estados Unidos.

-- Você acha mesmo?

-- Tenho certeza! Não há país tão rico e poderoso como o nosso. Todo mundo quer vir morar aqui.

-- Eu não quero.

-- Tá vendo só? Depois diz que não fez nada errado. Você é comunista?

-- Não.

-- Estranho, muito estranho... Por que não quer morar aqui?

-- Questão de gosto.

-- Eu não disse?! Os caras da imigração não fazem nada à toa! Os Estados Unidos são a pátria da liberdade, você nunca ouviu isso?

-- Ouvir eu até ouvi. Mas... ah, deixa pra lá. Obrigada pelo papo. Vou indo.

-- Não vai levar nada?

-- Tou sem grana.

-- Mas nós aceitamos todos os cartões de crédito.

-- Também estou sem cartão.

-- Pois faça um cartão da loja! Você tem crédito pré-aprovado, e 10% de desconto nas compras feitas hoje.

-- Hey, dude, você não está vendo? Eu sou uma capivara! Capivaras não trabalham, não têm crédito, não fazem compras.

-- Ah, mas nos Estados Unidos todo mundo tem crédito!

O encontro deixou a Capi muito perturbada. Ela é ruim de contas, coitada, mas na sua cabeça aquilo não fazia o menor sentido. Como é que todo mundo pode ter crédito?!

(A trilha sonora vem mais tarde, porque o dia está lindo e eu vou aproveitar para sacar unas fotos...)

Nenhum comentário: