6.3.08





Foto de Lucas Landau, arte (e joelho) de Cora Rónai

Vida nova

Colunista volta do “spa” forçado,
e leitora desabafa sobre a dengue



No dia 29 de fevereiro fui à redação pela primeira vez desde que fui atropelada. Foi uma sensação esquisita, complexa, difícil de descrever. Nunca me passou pela cabeça, naquela outra sexta-feira, dia 20 de outubro, que eu ia passar tanto tempo longe do Globo. O que eu previa, na verdade, era ficar dez dias sem ir ao jornal -- aproveitaria um resto de férias para fazer uma palestra em Florianópolis, para participar de um evento sobre mobilidade (ha ha ha) em Buenos Aires e para, ufa!, ir ao Festival de Cinema da Amazônia onde, além de me divertir muito, esperava colher umas crônicas.

Esperava também que sobrasse um tempinho para resolver uma quantidade de pendências de banco e de casa, aquelas coisas chatas que a gente vai empurrando com a barriga, e para as quais nunca encontra tempo no dia-a-dia. O abacaxi maior daquela outra encarnação eram as novas estantes do escritório, já encomendadas: eu precisava supervisionar a retirada dos livros e das estantes velhas. E aí aconteceu o que aconteceu. Encontrei de forma inesperada um rapaz numa moto, e a vida nunca mais foi a mesma.

* * *

Se isso fosse um filme, eu faria um corte aqui, e pularia para a Rua Irineu Marinho, na porta do Globo, onde, semana passada, desembarquei, como sempre, de um taxi. A diferença visível estava na muleta; as invisíveis, no joelho e na alma. Para mim, uma volta cheia de significados. Muitas etapas vencidas e muitos momentos decisivos reunidos no caminho aparentemente trivial que repeti ao longo dos últimos -- imaginem! -- 17 anos.

Fiquei comovida (agora dei para essas coisas); e, apesar das saudades e da alegria de rever os amigos, fiquei só um pouquinho, porque não tem nada mais estressante para quem está trabalhando do que quem chega em pleno fechamento querendo saber de tudo o que é novidade antiga.

Muitos notaram que emagreci. Alguns até me acharam com a aparência mais descansada, o que, afinal, era o mínimo que eu podia esperar da experiência radical, monótona (e caríssima!) do Wounded Knee Spa.

* * *

No tempinho que passei na redação, a mesa me saudou com a bagunça habitual e a cadeira com a habitual ausência; um dos momentos rotineiros da vida de trabalho, desde que me tenho por jornalista, é procurar pela cadeira sumida. Me senti em casa. Tudo está exatamente como estava, ou quase: agora já dá para ver que a Elis Monteiro não está sozinha, e que um projeto de gente chamado Guilherme ocupa um espaço e tanto na barriga da mãe.

Ainda não dá para voltar de verdade, com todo o gás. Ainda tem um joelho no meio do caminho que dói, que fica inchado, que precisa de gelo várias vezes por dia. Mas rever a parte da minha vida que estava faltando me deu ânimo renovado para a fisioterapia, para ver se consigo, o quanto antes, voltar a ter uma vida normal, daquelas em que a gente sai de casa, vai aonde tem de ir e faz o que tem de fazer, sem pensar quando ou como vai, sem pensar se tem ou não tem escada, sem ter de planejar tudo com antecedência, nos mínimos detalhes.

Há grandes novidades pela frente, há um ano de venturas e aventuras à minha espera, e o que eu sinto é que estou recomeçando -- agora, como nem podia deixar de ser -- com o pé direito.

* * *

A felicidade nunca é completa, porque há um mundo muito imperfeito à nossa volta. Leiam o que me escreveu a Maria Helena Nascimento:

“Escrevo com ódio. Ódio mesmo, simples e claro. Minha filha de 11 anos acaba de se recuperar de uma dengue hemorrágica muito grave, que causou a ela um sofrimento enorme, durante mais de dez dias, vinte e quatro horas por dia, sem descanso, sem alívio, fora o risco que ela correu. Imagine o que é ver uma criança assim. Agora no Globo.com vi que um menino da idade dela morreu de dengue hemorrágica em São João de Meriti. Eu mesma já tive a doença duas vezes (a primeira há nove anos) e nada me autoriza a pensar que estamos livres de tê-la outras vezes. Evito me perguntar quantas vezes um organismo agüenta ter dengue. Não devemos estar longe de descobrir.

Sei que ser brasileiro é aceitar o inaceitável, tolerar o intolerável, mas que raio de cidade é essa? Por que é que ninguém faz nada? Essa negligência é maldade, sadismo, ou uma incompetência além de todos os limites? Como é que em 2008 podemos estar reféns de um mosquito que já tinha sido erradicado há décadas? A maioria das pessoas toma todas as providências a seu alcance para evitar a proliferação do aedes em suas casas, mas a cidade não é só feita de casas, e alguma coisa me diz que saúde pública não se resolve com ações individuais descordenadas. Alguém deveria estar cuidando disso e não está. A única ação que se vê é o eterno e nauseante jogo de empurra das autoridades, enquanto pessoas vão morrendo por nada, por uma coisa que se resolve se houver vontade.

Do fundo da minha impotência, então, só me resta desejar, com toda força e com os piores sentimentos de que sou capaz, que os irresponsáveis que deixaram esta situação chegar onde chegou sintam na pele – e no estômago, na cabeça e nos ossos – todo sofrimento que estão proporcionando à população. De preferência repetidas vezes.

E se alguém souber de alguma coisa que possa ser feita para pressionar essas pessoas a cumprir sua obrigação – processo, ação popular, sei lá, o que for – me avise, eu faço tudo que estiver ao meu alcance.”


(O Globo, Segundo Caderno, 6.3.2008)

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