2.3.06



Confissões sobre a
Mulher Maravilha

Cronista revira o passado e toma notas
para uma futura cobrança Lá Em Cima



Deveria existir em algum lugar, numa Instância Superior, uma espécie de Conar onde a gente pudesse registrar queixas de propaganda enganosa contra o destino. Vejam o meu caso: cresci achando que ser mulher era ser algo semelhante à minha Mãe, que tem uma inteligência luminosa numa embalagem de estonteante qualidade.

Por exemplo: como Papai era o filólogo da casa, sequer reparávamos a facilidade com que ela circulava por seis idiomas, sendo que em italiano e em alemão ele volta e meia lhe pedia uma mãozinha. Não víamos nada demais nisso. Línguas diferentes existiam para serem faladas, e adultos para fala-las. Mamãe era professora de geometria descritiva na UFRJ, coisa que ninguém naquela casa de gente das Humanas jamais foi capaz de compreender ou apreciar.

Às vezes ela nos mostrava, cheia de entusiasmo, uma ou outra épura meticulosamente elaborada, apenas para se deparar com vários pontos de interrogação em forma de gente, que murmuravam, não sem certa zombaria na voz, "Oh, que beleza!", como analfabetos diante da Sagrada Escritura.

* * *

Ao contrário do resto da família, Mamãe sempre foi uma pessoa prática, e absolutamente genial com números. Até hoje, quando vai ao supermercado, já sabe o total de cabeça antes que a caixa diga quanto é; sabe usar ábaco, interpretar equações impossíveis e fazer instalações elétricas e hidráulicas. Ultimamente, anda meio preocupada com física quântica.

-- Sua Mãe é a pessoa mais inteligente que já conheci, -- repetia freqüentemente meu Pai, cheio de assombro. Ele, que ao longo da vida conheceu bastante gente inteligente e que não podia, definitivamente, ser acusado de falta de inteligência, sabia do que estava falando. Ser inteligente não é saber um monte de coisas, mas saber usar o conhecimento e a intuição, coisa que Mamãe sempre fez como ninguém. Quando projetou o sítio, em fins dos anos 50, já estava tão preocupada com o meio-ambiente que conseguiu, com os parcos recursos da época, construir o que hoje se chamaria uma "casa verde".

Quando estávamos de férias, aliás, Papai e Mamãe jogavam, rotineiramente, uma ou duas partidas noturnas de palavras cruzadas. Mamãe ganhava sempre, assim como ganhava também do meu tio Aurélio (o do dicionário) e de quem mais topasse participar do jogo, em que língua fosse. A questão é que, enquanto Papai e tio Aurélio pensavam nas combinações possíveis de palavras, Mamãe pensava ainda mais na combinação dos números: era engraçado ver um dos dois sacar da algibeira uma linda palavra comprida e obscura, para ser derrotado por uma reles letra Q plantada sobre uma casa que multiplicava em proporções geométricas tudo o que havia à sua volta -- inclusive a tal palavra enigmática.

* * *

Nós, crianças, achávamos tudo isso normal, assim como achávamos perfeitamente normal o amor e a admiração mútuos que nossos pais sentiam um pelo outro, simples confirmação do "foram felizes para sempre" que líamos nos contos de fadas. Também achávamos normal que uma mulher não mudasse de peso nunca e que estivesse sempre linda, sem recorrer a cremes, maquiagem ou dietas.

Acho que só começamos a desconfiar do logro em que havíamos caído quando entramos na adolescência e nossos jeans começaram a ficar apertados; quando, por mais que quebrássemos a cabeça, não achávamos a resposta lógica e clara que Mamãe sempre teve e tem para as questões mais complicadas; e, sobretudo, quando nos casamos.

* * *

Pergunto: é justo crescer em tal estado de ignorância?! É justo ser filha da Mulher Maravilha achando que aquele é o Padrão Feminino Básico?! Sinceramente: no dia em que eu morrer, quero ter uma conversa muito séria com Alguém Lá Em Cima. Não é assim que se prepara ninguém para a vida, ora pitombas.

Até lá, o que eu posso dizer é que, tendo aos poucos descoberto que criatura verdadeiramente extraordinária é minha Mãe, não me canso de amá-la e de admirá-la acima de todas as outras coisas e pessoas, e de contemplar, cheia de orgulho, o outro lado da moeda: afinal, eu tirei a sorte grande.

Feliz aniversário, Mami querida. Muito obrigada por tudo, de verdade -- até por continuar, aos 82, com o mesmo corpinho e o mesmo peso dos seus 20 anos. Assim eu posso, com toda a honestidade, dizer que tenho a Mãe mais linda do mundo.


(O Globo, Segundo Caderno, 2.3.2006)

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