9.3.06



As grandes fotos não mentem jamais

Melhor que um disso, só dois disso:
o fino olhar de Flávio Damm em duas exposições seguidas



Reparem: o mundo está cheio de fotos. Agora mesmo, neste exato momento, onde quer que vocês estejam lendo isso, há inúmeras, incontáveis fotos ao seu redor. Elas estão soltas, dispersas no ar, apenas esperando que um olho atento as perceba e traga até nós, como minúsculas frações de tempo eternizadas.

O mais interessante é que, até num mesmo momento e lugar, jamais haverá dois olhares iguais; de modo que as fotos nunca se repetem, ainda que, às vezes, possam ser parecidas. É nas sutis diferenças que guardam entre si, no entanto, que se esconde a Grande Arte -- um jeito de ver, um ângulo, uma história que se conta.

Para quem tem um mínimo de sensibilidade visual -- e é razoável supor que quem vem a uma mostra de fotografia tenha bem mais do que isso -- as fotos revelam tanto da alma por trás do olho quanto das imagens para além da lente.

Há 60 anos, Flávio Damm se dedica a nos mostrar o que viu, de acontecimentos históricos a pequenos momentos da vida cotidiana. Há 60 anos ele nos mostra, quadro a quadro, porque é um dos maiores fotógrafos deste nosso país de grandes fotógrafos. Seria difícil fazer um retrato seu mais fiel do que o que contam essas imagens, colhidas entre os milhares de negativos dos seus arquivos meticulosamente rganizados.

Em todas há o traço comum do olhar generoso e inteligente, a cultura da composição, a elegância. Há também um senso de humor que não se contém diante de nada, do ditador prosaico tomando cafezinho ao presidente alado, da morte que atravessa a rua, mal disfarçada, às velhinhas que fazem pendant com seus gatos, no jardim.

Há uma mente extremamente alerta se mostrando nessas fotos, uma curiosidade quase malsã. Há reflexos de caçador por trás dos sorrisos, dos pássaros, das simetrias.

Há, também, um olhar profundamente brasileiro. Não me perguntem como se identifica este olhar, porque não sei; só sei que, sendo eu mesma brasileira, amante da minha terra, me dá gosto me reconhecer nesse jeito de ver o Brasil e o mundo, nessa forma familiar e íntima de lidar com tudo e todos.

Durante décadas um dos nossos principais fotojornalistas, Flávio Damm se dedica, hoje, a fotografar exclusivamente o que quer, para expor e para aumentar a sua série de onze livros já publicados. Escreve sobre fotografia e acompanha, com atenção, o trabalho dos colegas. Como todos os verdadeiramente grandes, tem sempre uma palavra de estímulo para os que começam, e um entusiasmo genuíno pelo que vê de bom.

É este entusiasmo sem fim que orienta seu trabalho. Conhecedor profundo da arte e da técnica, adora conversar sobre fotografia -- a paixão de uma vida inteira. Nunca se sentiu atraído pela foto a cores, e não quer saber de câmeras digitais; mas não por vagos motivos fundamentalistas, e sim por gostar mais do P&B e estar inteiramente à vontade com suas queridas Leicas.

Atenção, porque este detalhe é importante e revelador: o que em tantos fotógrafos da sua geração é rejeição rancorosa, nele é escolha amorosa. Simples assim. É muito bom ver o que Flávio Damm viu e vê, não só pelo encanto e pela surpresa de cada foto, mas também porque se intui, a partir das imagens, a finíssima qualidade do ser humano que as registrou.

Acreditem nos seus olhos.

É tudo verdade.

* * *

Escrevi este texto para uma exposição de Flávio Damm em São Paulo, há mais de um ano. Agora nós, cariocas, podemos ver parte da sua produção em dois tempos: até o dia 16, a Galeria Soraia Cals, na Gávea, apresenta "Pelos Brasis afora -- Bahia anos 50", uma seleção de 64 imagens inéditas daquela Bahia que vive até hoje nos romances de Jorge Amado; a partir do dia 17, entra em cartaz "Brasil, um país e seu tempo", com 54 fotos que vêm de 1944 até hoje.

A proposta da galeria, inaugurada com as exposições de Flávio, é interessante. O espaço é dedicado à fotografia, com um detalhe muito simpático e importante: em vez dos catálogos mais ou menos descartáveis com que estamos acostumados, um livro é editado em função de cada exposição. Um livro de verdade, caprichadíssimo, daqueles que dá gosto ter na estante. Confiram!


(O Globo, Segundo Caderno, 89.3.2006)

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