1.3.07


Carta-bomba

A Receita informa: tenho 48 horas
para pagar R$ 11.448,22



Eu estava trabalhando tranqüilamente no escritório, cercada pelos gatos, quando chegou a correspondência do dia. Um livro, duas contas, um convite para uma liquidação irresistível, uma cantada de cartão de crédito -- e uma carta-bomba, que explodiu metaforicamente nas minhas mãos, matou a tarde e acabou com o meu bom humor, levando de quebra vários planos e projetos.

A maioria das cartas-bomba brasileiras vêm, hoje, com o selo do governo: não há cidadão que receba correspondência oficial sem sentir frio na barriga e pressentimento ruim. O governo nunca convida para um cafezinho, nunca chama para um programa bacana. Comigo não foi diferente. O envelope, que nem o era, trazia não um remetente, mas um elenco de filme de horror:

Ministério da Fazenda
Procuradoria-geral da Fazenda Nacional
Aviso de cobrança -- urgente
Dívida ativa da União
Cobrança judicial

Diante de tudo isso, o que faz um cidadão temente a Deus e ao fisco?! Chama o cardiologista? Auto-medica-se e toma Valium? Detona aquela garrafa de vodka guardada para uma ocasião festiva? Telefona para a mãe?

Não tenho cardiologista, não bebo, não tenho Valium em casa. Liguei para a Mamãe mas ela estava na piscina, treinando -- ter mãe atleta tem dessas coisas. Respirei fundo e abri a carta. A Receita Federal me dava 48 horas para pagar R$ 11.448,22. E acrescentava, numa letra minúscula que só consegui ler de puro pavor: "Caso (o débito) não seja pago ou parcelado será ajuizada a competente ação de execução fiscal, o que resultará na penhora de bens e conseqüente alienação em leilão".

Pergunto: quem tem quase 12 mil reais só assim, sobrando, para pagar à Receita? Digo, quem cidadão de bem, não-sanguessuga ou mensaleiro?! Já nem vou entrar pela questão político-filosófica que vem embutida numa cacetada dessas -- por quê tenho que pagar tudo isso, além do que já pago todos os meses?! Por quê tenho que trabalhar a metade do ano para sustentar maracutaias, valeriodutos e corruptos de maior ou menor porte?! Independentemente disso tudo, que não é pouco: de onde se tiram 12 mil reais de um dia para o outro, quando não se tem poupança, investimentos, carro ou amigos generosos como, digamos, um Paulo Okamoto?!

De onde vinha o raio que me caiu sobre a cabeça?! Sou pessoa física, assalariada. Eventualmente, recebo direitos autorais por livros ou artigos publicados aqui e ali. Pois deu-se que, no remoto ano de 2002, recebi uns caraminguás de uma editora que declarou-os à Receita, mas não me mandou o comprovante no fim do ano. E eu, que não me lembrava sequer do trabalho, não me lembrei também dos ditos caraminguás e, muito menos, de correr atrás do comprovante. Como correr atrás de algo de que a gente não se lembra?

A verdade é que o descuido do contribuinte é a alegria da receita. Não há investimento no mundo, nem mesmo ações do Google, que rendam tanto quanto um erro numa declaração de imposto de renda no Brasil.

Eu disse que não ia entrar pela questão político-filosófica embutida no caso, mas não resisto. O que pagamos de imposto neste país já virou doença social: tenho amigos perfeitamente qualificados que optaram por não trabalhar porque, tendo um certo pecúlio, preferem sair quites no fim do ano em vez de se aborrecer com impostos. São pessoas que vivem literalmente de renda, ao contrário das que vivem de salário; não produzem nada, mas são favorecidas pela legislação.

Eu mesma começo a pensar seriamente se vale a pena fazer qualquer coisa além do meu trabalho no jornal. Com uma fonte de renda única, o governo pode me extorquir à vontade, mas não pode me assaltar pelo correio, de um momento para outro, por qualquer dá-cá-aquela-palha. A verdade é que meu trabalho extra é tão descontado, mas tão descontado, que o pouco que me sobra simplesmente não compensa o tempo perdido.

Assim como sistematicamente empurra a sociedade para o contrabando, com suas taxas de importação impraticáveis, o governo há tempos empurra os cidadãos para a improdutividade, no melhor dos casos, ou para a sonegação, no mais comum. Falamos constantemente na necessidade de um choque de ética e de moralidade na sociedade como um todo, mas para que isso aconteça é necessário, antes de mais nada, dar à sociedade um mínimo de condições para o exercício da ética. Não se pode pedir a ninguém que trabalhe cinco meses por ano para o governo, de bom grado, sabendo que seu suado dinheirinho não vai financiar escolas, hospitais, estradas ou melhores condições de segurança, mas sim sumir no próximo escândalo financeiro.

Incapaz de me concentrar no trabalho depois de receber a carta-bomba, resolvi dar uma volta de bicicleta para espairecer. Na altura do Piraquê, parei para fotografar essa garça. Um leitor passou por mim, levando o filhinho pela mão. Acenou, alegre:

-— Ahá! Já vi sobre o que vai ser a coluna dessa semana!

(O Globo, Segundo Caderno, 1.03.2007)

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