7.9.07


O caso das bulas safadas

Vai viajar? Cuidado: o chefe da Receita em
Guarulhos resolveu legislar por conta própria



Uma leitora que infelizmente não se identificou me mandou uma carta à antiga: um papel dobrado dentro de um envelope selado. Na verdade, dois papéis. Um era a xerox da bula do seu remédio, o outro um bilhete indignado com o tamanho da fonte, tão pequena que eu mesma, que enxergo bem de perto, precisei me esforçar para ler. O remédio se chama Celebra e, entre outros usos, é indicado para artrite reumatóide, doença de gente que, provavelmente, já não tem aquela vista toda para ler tratados farmacológicos em corpo 2. Por curiosidade, procurei na web a página da Pfizer, para ver como essa bula ilegível seria apresentada online. Lá, num documento pdf em corpo 11, a maçaroca compactada numa reles folhinha ocupa nada mais nada menos do que... 25 páginas!

Há algo profundamente errado com essa bula. Se ela precisa mesmo das 25 páginas que ocupa na internet, se todas aquelas informações são de fato indispensáveis para o usuário, é inadmissível que, na embalagem da farmácia, elas venham reduzidas a ponto de não se poder lê-las sem lupa. Se algumas ou várias informações são desnecessárias, para que desviar a atenção das pessoas do que é importante? E, já que estamos nisso, o que custaria à Pfizer, um dos laboratórios mais lucrativos do planeta, contratar um profissional para redigir o documento de forma inteligível e livre de redundâncias?

Afinal, a quem se destina uma bula dessas?

É possível que um trecho como "A atividade do citocromo P450 2C9 é reduzida em indivíduos com polimorfismo genético que levam à atividade reduzida da enzima, tais como aquelas homozigóticas para o polimorfismo CYP2C9*3" seja fascinante para profissionais da saúde, mas que instrução ou esclarecimento pode trazer ao leigo? Médicos têm muitas formas de saber como funciona um remédio, a começar pelo obrigatório DEF; não precisam de bulas, muito menos ilegíveis.

Recomendo à Pfizer e aos grandes laboratórios especializados em bulas de 25 páginas espremidas em papeluchos ridículos que estudem as excelentes bulas dos fabricantes de remédios veterinários. No afã de bem informar, elas trazem até desenhos quando necessários à melhor compreensão do texto.

Bulas foram inventadas para proteger os usuários, explicando-lhes o uso correto dos medicamentos e alertando-os para eventuais riscos e reações adversas. Elas perdem a razão de ser quando, redigidas apenas para proteger os laboratórios de processos judiciais, tornam-se incompreensíveis para quem de fato precisa delas.

* * *

O alerta foi dado quase que simultaneamente por vários blogs especializados em viagens. Tomei conhecimento quando bateu no "Viaje na viagem", do Riq Freire. Desde o dia 20 de agosto, a Receita Federal exige a nota fiscal original para registrar a saída de bens no aeroporto de Guarulhos. A medida foi tomada na surdina, de um dia para outro, e está pegando muita gente desprevenida.

No site da Receita Federal, não há a menor referência a essa súbita necessidade de apresentação de nota fiscal. As instruções são muito claras. Para viajar com seu material e voltar sem ser tributado, "o viajante deve preencher a DST (declaração de saída temporária) em duas vias e, no momento da saída do Brasil, dirigir-se à fiscalização aduaneira, no setor de bens a declarar, a fim de registrar a saída dos bens".

Já nem vou falar no transtorno que este surto de prepotência paulista cria para quem viaja; mas ao inventar moda e assinar a ordem de serviço ALF/GRU nº 2, que considera todos os viajantes culpados de contrabando, o senhor José Antônio Gaeta Mendes, inspetor chefe do Aeroporto de Guarulhos, atropela o espírito da lei, que parte do princípio de que todos são inocentes até prova em contrário.

Segundo gente que voltou de viagem pela aduana particular do inspetor-chefe em Guarulhos, DSTs antigas ou obtidas em outras unidades da federação continuam valendo, e dispensam a apresentação de nota fiscal. A obtenção de novas autorizações em Guarulhos, no entanto, está sendo um pesadelo.

Meu conselho, para quem sai daqui com equipamento novo: chegar mais cedo ao Galeão, e registrar tudo aqui. Foi-se o tempo em que a escala em São Paulo era a oportunidade perfeita para ir à Receita.

* * *

Comecei a ler "A cidade do sol" com certa apreensão. Encantada com "O caçador de pipas", achava difícil que Khaled Hosseini conseguisse escrever um segundo livro tão interessante e original quanto o primeiro. Dois dias depois, estou pisando em nuvens: ele repetiu a dose com surpreendente maestria. Contador de histórias extraordinário, Hosseini tem o poder de dar ao trágico cotidiano do Afeganistão uma dimensão humana, miúda, palpável. O maior triunfo da sua ficção é abrir nossos corações para a terra distante que, até outro dia, era só mais uma manchete no jornal.

(O Globo, Segundo Caderno, 6.9.2007)

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