26.5.05





Tempo de ratos

Eles estão por toda a parte, mas a prefeitura do Rio trabalha para integrá-los à paisagem


Toda família tem uma pessoa "forte", capaz de segurar a onda quando a casa está vindo abaixo. É a tia ajuizada, o primo racional, a filha que sabe que alguém tem que manter a cabeça no lugar; gente capaz de descobrir aspectos positivos nas piores calamidades, dando-lhes uma razão aceitável de ser. Pois a semana passada foi pródiga em manifestações de pessoas fortes da família Brasil: não se abriu jornal ou revista em que não houvesse um colunista louvando os aspectos positivos embutidos na corrupção geral ou no descaramento compulsivo e patológico das autoridades.

Foram esforços bonitos e cheios de mérito. Um país em que 87% dos habitantes perderam a fé nos políticos (os 13% restantes sendo, provavelmente, políticos ou parentes de políticos) e 75% confiam nos militares, é um país em pleno ataque de nervos, precisado demais de tias, irmãs e primos sensatos.

Não sei como é com vocês, mas comigo, infelizmente, isso já não funciona. Já não consigo ver qualquer graça ou redenção neste lodaçal. Os crápulas de Rondônia me enojam, a corja de Brasília me ofende, as pragas rogadas sobre a nossa cidade me dão ímpetos assassinos. Na podridão que vem à tona já não vejo nada além da gangrena pustulenta que corrói o país de alto a baixo, nem percebo num futuro próximo ou longínquo qualquer sinal de cura -- até porque as pessoas que mais deveriam se preocupar com a situação, a começar pelo presidente, não estão nem aí.

Uma sentença como a da juíza Denise Appolinária dá gosto, certamente, mas não regala a vida: por rara e preciosa que seja, é pouco mais do que uma aspirina para um organismo que nem numa UTI se salva mais.

* * *

É, eu sei, já fui mais otimista; até já fui, algumas vezes, uma pessoa forte. Acontece que é impossível manter o bom humor em tempos tão safados. Mesmo a convivência entre pessoas, plantas e bichos, que ainda garantia a tantos de nós aquele mínimo de felicidade para suportar o insuportável, anda ameaçada. A Associação de Moradores da Fonte da Saudade, por exemplo, convencida de que assaltante dá em árvore, quer acabar com o manguezal da Lagoa; representantes dos governadores acasalados declararam guerra aos gansos do Flamengo; o Ibama persegue um papagaio que, há 25 anos, vive contente numa escola. É como se, de repente, do nada, surgisse uma onda de avassaladora boçalidade contra tudo o que ainda há de bom, bonito e amável à nossa volta.

Para completar o quadro, a prefeitura monta, sorrateiramente, o palco para o que pode ser a reedição de um dos grandes clássicos da História: a Peste Negra. Protagonizada por ratos soltos num continente do qual praticamente toda a população felina havia sido exterminada, a epidemia fez tal sucesso na Europa do século XIV que, até hoje, ainda se fala nela. Pois, neste momento, o Secretário de Proteção e Defesa dos Animais, senhor Victor Fasano (não, não é piada), ignorante da História ou atraído por seu extraordinário potencial dramático, trabalha, com empenho, para abrir terreno para os ratos, eliminando todas as colônias de gatos da cidade. Além do extermínio puro e simples, ele propõe trancafiá-las em "cercadinhos" ou numa suspeitíssima "Fazenda Modelo"; o importante é que desapareçam das ruas, das praças, da vista de todos -- para que os ratos possam, enfim, tomar conta do território que política e legitimamente conquistaram.

Suposto entendido em aves, o senhor Fasano tem tal desprezo pelos bichos sem pedigree -- por quem, ironicamente, deveria zelar -- que conseguiu trazer para a sua pasta o órgão do qual todo amante de animais quer distância: o Centro de Controle de Zoonoses, que captura e extermina bichos sem dono. Para o povão, que desconhece a moda das expressões politicamente corretas, o CCZ atende por carrocinha.

Isso explica o apoio do secretário a quem maltrata animais. Sua colaboração com o extermínio de gatos no Jockey Clube, por exemplo, tem sido inestimável. Há dois fins de semana os coitadinhos presos no "gatil", em tese sob tutela da prefeitura, não recebem ração: é que a secretaria se esqueceu de que eles comem também aos sábados e domingos. Enquanto isso, gente que tenta dar comida à meia-dúzia de gatos pingados que ainda permanece solta é escorraçada pela segurança. Em consonância com o credo do senhor Fasano, que já manifestou profunda preocupação com a obesidade dos animais de rua (não, não é piada), a diretoria do clube proibiu alimentá-los, mesmo na calçada -- antigamente, espaço público.

Em suma: não, não dá para ser feliz nessas circunstâncias.

Como pessoa, sou a favor de uma cidade civilizada, onde plantas, pessoas e animais sejam respeitados. E, como eleitora e contribuinte, sou radicalmente contra a opção preferencial do prefeito e do seu secretário pelos ratos. Chega de nepotismo!


(O Globo, Segundo Caderno, 26.5.2005)

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